Aperte os cintos: o piloto sou eu
Puerpério é o nome da viagem mágica e desgovernada. E não adianta o quanto se fale sobre: só vai entender quem embarcar nesta aeronave.
Dentre as centenas de voos que peguei ao longo da vida de mochileira, tinha um fenômeno que, em especial, me encantava. O momento em que era possível materializar que a ideia de controlar o tempo é um artifício ilusório adotado pela humanidade (uma das minhas pautas recorrentes). Isto acontecia quando em uma viagem longa, com troca de hemisférios, paralelos, meridianos, e o que mais a geografia possa denominar, eu assistia em uma fração de segundo (ou minuto, não sei precisar), a noite se transformar em dia ou vice-versa, instantaneamente, ignorando completamente o relógio que girava.
Neste flagrante, compreendia a força do universo e era obrigada a adiantar ou atrasar ponteiros – mesmo que digitais, vamos lá –, ignorando completamente a rotina biológica treinada pelo meu corpo e mente. Além de assistir à força maior agindo, me fascinava a transformação abrupta do céu, que me provocava a escancarar a janelinha do avião buscando amplitude. Diferente de acompanhar o nascimento do sol ou da lua, que são trâmites graduais e dão margem para acostumarmos a visão e a pele aos novos tons de luz, caimos ou saimos do breu de imediato. Entre uma inspiração e expiração, BUM: adapte-se.
Há 21 dias, desde a chegada do Frederico neste plano, me percebo fixada neste lugar: em trânsito, mas presa em um tempo que corre paralelo ao das outras pessoas (a ironia é atrelar o número de dias ao hábito, aliás, chama o cara do best-seller aqui para esta conversa). O fuso é o de uma vida nova, que chega sem motivos para ordem, come quando tem fome, dorme quando tem sono e age por necessidades e vontades genuínas. Puerpério é o nome da viagem mágica e desgovernada. E não importa o quanto se fale sobre: só vai entender quem embarcar nesta aeronave. Lá fora, ao que parece, têm estrelas, carnaval, sol, guerra, nuvens, Oscar, chuva, política, frio, futebol, calor, veraneio. Mas do ponto de vista de quem observa de dentro, está tudo estático, como se a Terra seguisse girando apenas para que orbitássemos em torno deste ponto solar que precisa da nossa energia para seguir brilhando.
Difícil? Não, eu não diria. Complexo, sim. Ilógico. Catártico. E ambivalente. Sempre. Em questões de horas, é possível flutuar de gargalhadas de alegria e realização incondicional a um choro compulsivo de dúvidas e arrependimento. Seguido da culpa. Esta senhora melancólica que se pendurou no meu pescoço, como se fosse um bicho-preguiça, e se arrasta comigo por aí, quase que domesticada. Nesta viagem, a gente imagina o destino, sonha com ele, deseja montanhas, praias, campos floridos, mas não há previsão de chegada e nem pistas do bioma em que aterrissaremos. Enquanto a gente torce para que a fase dê passos largos para alcançar maturidade e experiência, há a aflição de saber que aquele olhar, aquele cheiro, aquela expressão, aquele chorinho evolui a cada dia, em um voo sem chances de arremeter. Não tem volta. “Aperte os cintos e aproveite agora” define o enunciado grafado em letras maiúsculas no banco do passageiro da frente.
Viver por outra vida. O puerpério exige esta provação. Ir aos extremos e à exaustão sem objetivo individual, completamente entregue e a serviço de um pingo de gente moldado em vulnerabilidade. Para mim, é sobre se equilibrar naquela confusão de fusos e paisagens do lado de fora do avião, com um pé no dia e outro na noite, admirando a beleza da imensidão do desconhecido e sem espaço para pensar no que acontece lá embaixo, em solo firme. É um turboélice, inconstante, mas que a gente sobrevoa pertinho do mar turquesa de alguma ilha paradisíaca. Nestes altos e baixos, não custa reforçar: em caso de despressurização da cabine, coloque a máquina de oxigênio antes em você, volte a respirar normalmente, e só depois auxilie a criança em seus braços.
Que texto lindo! Adoro como tu expõe tuas emoções, descreves as alegrias e as dificuldades sem fazer disso um drama . Torna real e emocionante os momentos partilhados!
Faço questão em te apoiar! Trabalho lindo!!!
Muito bom teu texto Fernanda! A mudança que um serzinho pequeno faz com a gente neh! A força que nos dá para aguentar esses primeiros dias por ser tão dependente! Muita força e ótima adaptação para vcs três. Bjo grande