Convidei meu eu de 10 anos atrás para tomar um café
Enquanto algumas pessoas têm a oportunidade de serem mais generosas com o próprio passado, outras precisam transformá-lo em ferramenta para quebra de ciclos e, quiçá, mudanças de trajetórias.
Convidei a minha versão de 10 anos atrás para tomar um café. Se você é conectado às redes sociais, possivelmente, deparou com essa “trend” no Tik Tok ou Instagram. Caso você tenha a sorte de estar alheio às tendências virais de internet, eis o resumo: tratava-se de uma sequência de fotos ou vídeos em que a pessoa compartilhava as mudanças que se passaram em uma década de vida. Normalmente, positivas. “Você virou uma grande empreendedora”; “você casou e constituiu uma família linda”; “você mudou de emprego e realizou o sonho de conhecer Paris”, dizia o futuro para o passado. Claro, para dar um toque romanceado à história, os monólogos traziam algum ponto de desafio ao longo da trajetória: “você passou a confiar mais em si”; “você descobriu que poderia acreditar no amor apesar de tantas desilusões” e outras vírgulas antecedendo objetivos alcançados.
Nesta semana, comecei um projeto que o meu “eu” de 10 anos atrás certamente ficaria orgulhoso: um clube do livro para mulheres em situação de vulnerabilidade social, em parceria com a ONG Dia do Amor. No nosso primeiro livro debatido, “Foi um Péssimo Dia, da Natalia Borges Polesso, coincidentemente, existe uma passagem semelhante à trend das redes sociais. A personagem principal, uma adolescente um tanto atrapalhada, percebe-se em uma atividade escolar chamada de cápsula do tempo, em que precisa escrever uma carta para a sua versão mais nova. Então, entrando no clima da obra, solicitamos às meninas que fizessem o mesmo: se você pudesse falar algo para quem você foi há 10 anos, o que diria?
Para a minha surpresa, o rumo da conversa foi bem diferente do que a trend vaidosa das máquinas de like. Os conselhos foram todos sobre os caminhos que deveriam ter sido evitados. “Eu diria para não me casar”, “Me lembraria de ser menos impulsiva”, “Teria respeitado e escutado mais a minha mãe”. Eram olhares duros para um passado com consequências balizadoras de destinos. E não tem a ver com copo meio cheio ou vazio, é sobre vidas que andam por estradas diferentes. Enquanto algumas pessoas têm a oportunidade de serem mais generosas com o próprio passado, outras precisam transformá-lo em ferramenta para quebra de ciclos e, quiçá, mudanças de trajetórias.
O passado precisa ser analisado com lentes e lupas apropriadas. Tentar anulá-lo, blindá-lo ou omiti-lo é perda de tempo e de valor. É quase como um canhoto que esquece de sustentar o braço ao escrever e acaba borrando as palavras com tinta de caneta com o peso do próprio punho. É impossível só se arrepender do que você não fez, como diria um texto batido de autoajuda. Arrepender-se é solidificar certezas. Ao final da nossa troca, também resolvi participar e abri o jogo sobre algo que deixou marcas irreversíveis na minha vida. Entendi que aceitar e assumir é parte de um processo de proteção importante para pisar em terras mais firmes. Poder falar sobre algo que nos prejudicou ou um erro cometido é canalizar oportunidades para um futuro mais consciente.
Quando estiver em dúvida sobre o futuro, volte. O passado é um lugar que, vez ou outra, precisa ser visitado.