Eu sei o que passa na cabeça de alguém que escala um vulcão na Indonésia
Há oito anos, eu também coloquei uma mochila nas costas com muita roupa e pouco preparo e saí para desbravar o mundo sozinha.
“Mas o que passou na cabeça?”, “também, né? Quem se arrisca deste jeito?”, “o que alguém faz em uma trilha em um vulcão sem preparo?”. Eu consigo responder todas estas perguntas. Eu já estive em um lugar muito semelhante ao de Juliana Marins, brasileira de 26 anos, que morreu ao despencar em meio a uma trilha em um vulcão na Indonésia. Há oito anos, eu também coloquei uma mochila nas costas com muita roupa e pouco preparo e saí para desbravar o mundo sozinha. Lá pelas tantas, após cinco meses de peregrinação, ao chegar em Bali, ouvi falar que a vista mais linda da região era ao amanhecer, do topo do Mount Agung, um vulcão com 3.142 metros de altitude, que se situa no ponto mais alto da ilha. Não pensei duas vezes – mesmo. O passeio foi contratado em uma agência no centro de Ubud e, assim como em qualquer outra empreitada turística, observei as imagens de milhares pessoas que já haviam realizado o mesmo trajeto e cumprido algo ímpar.
À meia-noite, o guia passou para buscar eu e uma amiga no hotel, adentramos o caminho no alto da madrugada e, sem dúvida alguma, foi uma das experiências mais intensas que já tive. Pela exaustão, pelo frio, pelo despreparo e pela euforia de chegar lá em cima e presenciar o céu mais lindo de todos. No meu livro “Quem é a Estrada?”, publicado em 2021, relato parte desta vivência:
“Fomos munidas de um elástico para prender uma luz de led à testa, cajados e água. O guia tomou a frente. Como estávamos atrasados, perdemos o grupo que acompanharíamos: seríamos só nós três por seis horas de caminhada na floresta escura. Subir era difícil, disso a gente sempre soube. O caminho era traçado por obstáculos: galhos, pedras, lama, barulho do silêncio e buracos. Tudo isso somado ao frio da madrugada, ao sereno e suas gotas de orvalho, que deixaram minha jaqueta encharcada, e ao suor do corpo, por conta do esforço físico. O começo foi a pior etapa. Nos dez primeiros minutos, já pedi para dar um tempo. Ofegante, meu corpo não estava correspondendo ou entendendo o processo pelo qual estava passando. Tudo que a minha cabeça fazia era iterar obcecada: “não vou conseguir. Não vai dar. Não estou preparada”.
Meu ritmo não era o mesmo dos meus dois companheiros. Fui ficando para trás. Por vezes, até os perdia de vista. Sentia medo, olhava minha solidão mata adentro, tentava acelerar. Quando parava para respirar, meu coração pulsava forte na nunca e o corpo fraquejava. As panturrilhas latejavam. O relógio pendurado no meu pescoço tiquetaqueava: passaram-se só cinco minutos, mais quatro. “Não vai dar. Vou voltar. Vou sentar”. Foi só depois da primeira meia hora de sofrimento que entendi: eu estava sendo o meu pior entrave. A Pati gritou lá na frente, ecoando no desconhecido: “não pensa!”. Mindfulness. Estava ali o conceito prático do que a gente tanto estudo e pouco realmente entende: não pensar.”
Nos últimos dias, respondi muitas perguntas sobre esta aventura que não haviam me perguntado até então – simplesmente, porque ninguém achou tão absurda à época. “Mas era um guia profissional?”. Não, não parecia, acredito que era um local que conhecia muito bem o caminho. “Tu não pensou que poderia cair?”. Antes, obviamente, que não pensei. Ao longo da trilha, talvez. Mas de maneira alguma eu acreditei que poderia estar me matando. “O que passa pela cabeça de alguém que escolhe algo assim?” . Vontade de viver. Aliás, muita, muita vontade de viver. Viver mais. Viver diferente. Viver intensamente. Sentir novas emoções. Desbravar o mundo. Entendimento da vastidão do universo. Para alguém assim, o morno dá calafrios.
Assim como a Juliana, eu também atravessei o Vietnã na carona de uma motinho. Eu desci um rio no Laos em uma boia flutuante correnteza abaixo. Eu pernoitei na casa de uma família desconhecida em meio aos arrozais de Sapa. Fui a uma Full Moon Party na beira da praia na Tailândia. Pulei de bungee jump. Subi aos ares com um balão. Voei de paraglider. Mergulhei com baleias em alto mar sem colete salva-vidas. Me hospedei na savana africana ouvindo o som das hienas na janela do quarto. Passei a noite em um saco de dormir ao lado de uma fogueira no meio do deserto. Fui mulher caminhando sozinha na Índia, na Turquia, no Egito. Provavelmente, eu andei de mãos dadas com a morte em parte destes momentos. Mas eu estava tão agarrada à vida que nem percebi, nem notei, acolhi de certa forma aquela presença inevitável. Todos as manhãs a gente caminha em direção à morte. É um dia a mais que conta a menos. E aí, como diria o poeta “tolice é viver a vida assim, sem aventura”.
Talvez, eu seja a última romântica. Mas, na minha opinião, Juliana morreu vivendo. E viveu mais do que, provavelmente, muita gente que vai chegar aos 100 anos morrendo devagar. Eu honro o trajeto desta mulher. E de todas que vieram antes e, certamente, virão depois. Elas têm que vir.
“Se alguém me perguntasse se vale a pena escalar o Mount Agung para testemunhar a vida lá do topo, eu responderia: “simples assim?Não.” O que vale é o caminho, mesmo que no escuro seja bem complicado tatear ou visualizar qualquer faísca no horizonte. Enquanto colocava meus pés descalços no sol e tomava um leite com achocolatado em pó que nos serviram como troféu ao cruzar a linha de chegada, analisei com apreço cada calo e bolha conquistados no percurso. Senti orgulho da minha jornada.”
*Texto em homenagem a Juliana Marins.
Um texto sensível, real e apaixonado. Ela merece!! Sempre o que vale é o caminho, pra tudo nessa vida. A gente só precisa “se ligar” nesse detalhe. Adorei!! Que a família dela se conforte. Isso precisa chegar lá… beijos mil