Para a vida acontecer no seu tempo
Eu não engravidei por três anos. Por 36 meses, assisti minha menstruação liquidar a esperança que, para mim, tornou-se uma dicotomia, era o que me mantinha na busca, mas o que aumentava a frustração.
“Para a vida acontecer no seu tempo”. Perdi as contas de quantas vezes li, repetidamente, essa mesma frase estampada na parede da clínica de fertilidade, enquanto esperava um procedimento ou outro. Rá! O tempo. Sem compreendê-lo ao certo, a humanidade logo deu um jeito de criar ampulhetas, relógios e calendários para se proteger na ilusão de que é possível controlá-lo. E, por uma questão de sorte, estratégia ou logística, até parece ter funcionado. A gente desenha planos, guarda dinheiro na caixinha, conta nos dedos os dias para as férias, sonha lá na frente e se reporta ao futuro, este delírio que cria a falsa certeza do amanhã, mas que nos mantêm protegidos na vontade de chegar lá.
Eu não engravidei por três anos. Por 36 meses consecutivos, assisti minha menstruação liquidar a esperança que, para mim, tornou-se uma dicotomia, era o que me mantinha na busca, mas o que aumentava minha expectativa mutada em frustração. Depois de 8 meses tentando naturalmente - mesmo atentos a um possível diagnóstico -, eu e o Felipe, meu marido, buscamos ajuda. Visitamos algumas clínicas, conversamos com diferentes profissionais, e optamos por aquele que, em um universo tão potente e recente, com tantas perguntas sem respostas, nos impactou com humanidade. A tecnologia da ciência nos interessava, mas o ser humano por trás, mais.
Para quem pouco sabe sobre o tema, abro rusticamente parte do processo: a Fertilização in Vitro (FIV) começa pela coleta de óvulos da mulher; quanto maior a quantidade, mais chance de o tratamento dar certo. É nesta fase que se toma um tantão de agulhadas em hormônios para estimular a produção dos óvulos. No dia da punção, há uma cirurgia, com anestesia por sedação, para a retirada destes óvulos – e a descoberta (surpresa!) de quantos foram gerados após a incitação. Em paralelo, são recolhidos os espermatozoides do homem para a fusão tal qual conhecemos bem. Deste ponto, há uma espera de, no mínimo, cinco dias para entendermos quantos embriões se formaram e sobreviveram desta junção. Em seguida, parte-se para a análise deste material em laboratório (se recomendado pelo médico) para conferir quantos estão saudáveis para serem utilizados. No final, temos a Transferência Embrionária (TEC), quando o embrião é depositado no útero da mulher em um procedimento de 15 minutos, seguido de um dia de repouso - e é a partir deste momento que a ciência lava as mãos e termina o seu trabalho. Resta aguardar se a gravidez evoluirá ou não, fato que será descoberto através de um exame de sangue padrão ao término do décimo dia.
Foi nesta andança, no caminho da FIV, que o tempo gargalhou na minha cara. Viu só, bobinha? Você não está no controle de nada. É tudo devaneio de uma raça que se blinda simuladamente na prepotência. A sensação que eu tinha era de estar imersa, como um avatar, em um jogo de videogame. Driblando as fases, descobrindo os truques, melhorando em novas tentativas e, a cada “game over”, passando raiva, chorando, batendo pé, tendo vontade de quebrar tudo, deprimindo-se, mas depois de um gole de refri e uma fatia de pizza, apertando o “start” novamente.
No nosso caso, foram quatro (ou seis, dependendo do ponto de vista) “game overs” no período de um ano. Isto significa que, em uma mesma FIV, realizamos quatro transferências contabilizando, ao total, seis embriões – em duas vezes foram transferidos dois -, que não se implantaram. Tais rejeições, não são consideradas perdas gestacionais porque os embriões não chegaram a evoluir, pararam no estágio anterior. Contudo, ainda que negando por certo tempo, entendo que vivi lutos particulares. Planejei, sonhei, agi como grávida me privando e me cuidando, e a cada negativa, me enfraqueci, me debati, me questionei, culpei o universo e a mim.
Meu positivo só veio depois de quase um ano de pausa, após me sentar, exausta, em frente ao meu médico, e dividir a ansiedade engolida pela tristeza ao testemunhar todos os embriões partirem e saber que teria que me preparar para uma segunda rodada de FIV – investindo tempo, energia, dinheiro e saúde. A conversa se desenrolou três dias após a última negativa e à véspera do meu aniversário de 35 anos, idade simbólica para mulheres que idealizam engravidar. “Dr., se você me disser que preciso continuar, eu vou, mas sinto que estou no meu limite”, lamentei. No que ele respondeu: “Fernanda, tu não vais virar abóbora amanhã, às vezes, o emocional é tão ou mais importante que o físico.”
Nos nove meses que estacionei, aproveitei para brincar de controlar o tempo e planejar projetos viáveis, como viajar muito, resgatar meu corpo que estava refém dos hormônios e voltar a lutar boxe e a praticar corridas. Neste intervalo, eu e o Felipe avançamos no debate por alternativas ao tratamento e discutimos a possibilidade de uma vida sem filhos – que pareceu um bom caminho -, mas concluímos que a vontade perdurava. Afinal, eu continuava esperançosa às idas ao banheiro nos dias que se aproximavam do meu período menstrual, mesmo consciente de que as chances de uma gestação natural eram quase nulas. Eu decidi (entendendo que o corpo submetido era o meu, o Felipe deixou nas minhas mãos) que gostaria de ir até o fim, até que algum dos recursos, materiais ou não, se esgotasse. Em reflexões individuais, avaliei que só ficaria em paz ao alcançar a linha de chegada, independentemente do resultado.
Na primeira TEC da segunda FIV, deu certo – embora a contagem de óvulos tenha caído pela metade. Com isto, aproveito para reforçar aqui que um diagnóstico não é o elemento definitivo para os resultados. Frederico está com 16 semanas e vem aí, nesta espera tão esperada! Verifiquei o exame nove dias antes do meu aniversário de 36 anos e confirmei que o emocional é tão ou mais importante que o físico. Mas, presta atenção: falar para uma tentante “relaxar” é o completo oposto da empatia. É questionar uma condição física, biológica, que pode, ou não, progredir para algo mental. Aliás, o diagnóstico também só diz respeito ao casal, é íntimo e sempre pertencente aos dois, não existe culpado ou responsável. Um casal que pensa em se reproduzir só funciona junto – nesta hora, a união, o diálogo e a transparência são fundamentais.
Ao passar inúmeras vezes pelo Centro de Fertilidade do Hospital Moinhos de Vento, encontrei diferentes mulheres e homens, e o clima era sempre de discrição e sigilo, como se não estivéssemos no mesmo lugar. Custei a captar que não estávamos. Nesta jornada, cada luta é única e, na maioria das vezes, solitária. Dividir com o mundo a batalha, normalmente, é causa de mais angústia e tormenta. Também ficou evidente que pressionar um casal por ainda não ter filhos ou questionar indiscriminadamente é indelicado. Eles podem estar tentando, podem ter passado por uma perda ou simplesmente não quererem, o que está no direito. Já era tempo de nos conscientizarmos em não invadir o útero alheio.
No último dia naquela sala de espera, com 14 semanas de gestação, prestes a receber alta e me despedir da equipe, li mais uma vez a frase na parede: “para a vida acontecer no seu tempo”. Finalmente, interpretei: o tempo em referência não era o meu, mas o da própria vida. Respirei fundo, revisitei os três anos que se passaram e considerei como valores adquiridos, paciência, aceitação e sabedoria para lidar com o que não controlo. Definitivamente, o ritmo da vida não é suscetível à manipulação.
*Um agradecimento especial ao Dr. Eduardo Passos, meu médico responsável, ético e afetivo, e à equipe do Centro de Fertilidade do Hospital Moinhos de Vento, que foi incansável na nossa jornada; ao Dr. Bruno Tarrasconi, excelente profissional da área e amigo de infância, que nos abriu as portas se dispôs a conversar por quase três horas em um momento de aflição, trazendo conselhos sensatos e funcionais; à Beatriz, minha psicóloga presente em todos os momentos, altos e baixos, e responsável pelas minhas pausas e retornos; ao Pietro Reginatto e ao Aimoré Goulart, respectivamente, meu personal trainner e meu professor de boxe, que zelaram pela minha saúde e me acompanharam em resgates de autoestima nos momentos em que os edemas eram imbatíveis; à Imiana Wisneski, minha amiga da vida e nutricionista especialista em fertilidade, que chegou aos 45 do segundo tempo e não deixou a peteca cair, sendo fundamental para o meu resultado positivo. Aos poucos amigos queridos que compartilhamos a história e familiares, pai, mãe, mano e sogros, que acompanharam essa jornada dia e noite, sendo discretos, atenciosos, conselheiros e bons ouvintes. E, é claro, ao Felipe Hemb, que me respeitou em cada decisão envolvendo o meu corpo e se mostrou o melhor amor e parceiro que poderia ter escolhido para esta vida e para o pai do meu filho, te amo.
A todas as tentantes que me leem, desejo resiliência e equilíbrio para esta jornada. O caminho – seja ele qual for – sempre se abre.
Fiquei emocionada te lendo, Fê! Que alegria pelo caminho que se abriu e, com ele: Frederico <3 Um abraço em vocês 3!
❤️ minha total admiração por essa mãe que ja era mãe mto antes de qualquer coisa. Foi um exercício de paciência e dedicação que faz parte da vida diária de uma mãe. Obrigada por compartilhar, é tao importante falar sobre esse processo tabu que ninguém fala.
Agora Frederico vem ai como tudo, com toda energia, luz e amor que mereces. Mais um serzinho do bem chegando para deixar o lado de cá mais leve! Aproveite minha amiga! Beijo