Vida das rosas
Mas o que estalava meus olhos de menina eram as rosas. Do portão à porta da casa, minha avó plantou uma tripa delas, em fila indiana, de diversas cores e espécies.
Sabendo que sou uma encantada por girassóis – fascínio adquirido quase que por osmose do meu marido -, o Tiago, um grande amigo, me encaminhou outro dia a crônica “Morte dos Girassóis”, de Caio Fernando Abreu. Apesar do título um tanto mórbido, o texto não é sobre o fim diretamente. Discorre sobre a complexidade de cuidar e manter vivas estas flores, que parecem tão robustas, mas são engenhosas e atrapalhadas na própria força de crescimento. A leitura me levou imediatamente – ah, a leitura tem poder de transporte – para o jardim da minha avó, na pequena cidade de Esmeralda, no interior do interior do Rio Grande do Sul.
O município em que meu pai foi criado tinha cerca de 3 mil habitantes e fazia jus à brincadeira local de que a única coisa que crescia por aquelas bandas era o cemitério. Dentre tantos os encantos e assombros do casarão da minha avó, um terreno fértil para a imaginação infantil, a marca registrada era o jardim, ocupando toda a frente da casa para colorir as boas-vindas de quem vinha. No canto à direita, estavam lá: os girassóis. Difíceis de vingar, mas impressionantemente belos quando evoluíam. Não raro, minha vó, que não é lá o ser mais paciente de todos, desistia dos ramalhetes e colocava umas garças de cerâmica no lugar.
Mas o que estalava meus olhos de menina eram as rosas. Do portão à porta da casa, minha avó plantou uma tripa delas, em fila indiana, de diversas cores e espécies. Eu me acocorava pertinho de cada uma, com as mãos no joelho, e fungava buscando o perfume. Diferente dos girassóis, as rosas eram visivelmente delicadas e, frequentemente, uma geada, vento ou chuva detonava todo o canteiro. Minha avó lidava. Adubava, podava, cuidava, mas era difícil que florescessem. Por vezes, eu saía desembestada do carro depois da viagem de quilômetros em terra de chão batido em busca dos botões e só encontrava galhos em reabilitação. E quando o broto aparecia, eu ficava lá, borboleteando, na ansiedade de pousar por ali e assistir às pétalas se espicharem. Da cadeira da área externa, minha vó observava enquanto sorvia um mate e me alertava quanto aos espinhos, protegendo seu jardim de uma maneira sutil.
Certo dia, uma das mudas, de um vermelho vivo, daquelas rosas que diziam serem importadas, ganhou robusteza. Cresceu, alongou-se, formou um botão perfeito, que desabrocharia em breve. O curso seria cumprido de uma maneira inédita no quintal da Dona Alda. Só que eu não aguentei. Aproveitei a desatenção dos adultos, desviei dos espinhos e dei meu jeito de colher a flor. Entrei saltitante na cozinha fumaceada de cheiro de feijão vindo da panela de pressão e estendi a rosa: “Tó, vó, para a senhora”. Em um primeiro momento, identifiquei a combinação de um olhar de surpresa descontente com silêncio que sentenciava o imaginável: eu tinha aprontado. Passados alguns segundos pesados, só com a sinfonia do fogão ao fundo, veio a risada geral dos adultos no recinto, incrédulos. Após se recompor e bater as mãos no avental, minha avó agradeceu o gesto e deu jeito de colocar a flor em um copo com água para buscar uma sobrevida. Nos dias em sequência, acompanhei ansiosa a evolução da flor e assisti à involução das pétalas, que caiam aveludadas, uma por uma.
Algum bom tempo depois, ao entrar naquela correria portão adentro, deparei com uma nova rosa importada, desta vez, completamente aberta. Desabrochada. Enorme. Com um aroma potente. E só então compreendi o olhar da minha avó somado às gargalhadas de quem já tinha idade para entender melhor dos rumos da vida. O botão era lindo, mas ainda não estava na sua real potência. Há de se ter paciência e acreditar na força do tempo que mora no tempo para dar espaço à transformação e garantir que os ciclos se cumpram dentro da sua própria beleza.
Fernanda, que profundo esse texto.
Me lembrei dos moranguinhos que colhia com minha avó materna! Deu uma saudade! Gratidão por tua partilha!